quarta-feira, 27 de maio de 2020

O teste

Às vezes eu acho que estou passando por um imenso teste de merecimento, a sensação é de que estou prestes a receber a aprovação ou desaprovação de forma repentina, como se eu tivesse vencido desafios e respondido corretamente a perguntas que eu nunca ouvi, como se uma impressão psicológica ao meu respeito estivesse sendo construída para me darem um diagnóstico complementar a esse teste.

Se em algum momento eu estiver passando por esse teste e quem estiver me testando me achar inapto a tal coisa, indigno de pertencer ao outro lado, incapaz de corresponder a tais responsabilidades que vem com essa aprovação transcendental, digo que sou mesmo. Sou indigno, sou incapaz, sou improvável, sou tudo que qualquer ser humano mortal nega dizer que é. Sou falho, totalmente falho, cheio de paranóias, devaneios, contradições e desvios que só  ser humano é capaz de ter. Não quero ser divindade, não quero falsa santidade, não quero ter uma falsa identidade, não finjo ser quem eu sou em proveito de benefícios que não faço ideia que existam. Convivo com a minha realidade, com minhas inabilidades e fraquezas, existem dias em que estou melhor, outros dias eu quero sair de mim, dias em que sou um velho decrepto, outros em que sou uma criança ansiando um abraço de mãe.

Jamais pleiteei uma vaga entre os santos, entre os maiores e melhores filósofos e poetas atemporais, não me vejo sendo referência para quem deseja me seguir e não quero que me sigam se acharem que não mereço ser seguido. Quero ser referência de que mesmo falhando e inapto, continuo acreditando que minhas motivações e ideais continuam fazendo sentido para mim, por mais que para o resto da humanidade o que eu digo não passe de mais uma loucura sem sentido, um ideal vazio feito se palavras e atitudes que não me levam a lugar algum, não quero vãs divagações sobre possibilidades distantes, de sonhos insonhados por serem sonhos sem final.

Não quero ser avaliado por algo que não sou, ser cogitado a algo que nunca fui capaz de ser, não quero que votem ao meu favor, pois não estou concorrendo a cargo nenhum na minha vida, o que tenho é o que já sou, esse ser sou eu e nenhuma análise psicológica vai me fazer descrer de mim mesmo e de meu propósito individual perante a minha própria consciência, aos meus familiares e a Deus. Sou o que sou, não escondo, não exagero, não modifico, não finjo. Quer votar em mim, vote!  Não faço questão de ser eleito, esse pleito não é meu, mas se quiserem acreditar em mim, junte-se a torcida.

Se julgarem-me merecedor, não vou me gloriar, levantar meu nariz ou fazer longos discursos. Se me julgarem inapto, eu nunca soube mesmo porque teria de ser provado, nunca soube qual seria o prêmio e muito menos as vantagens de tal vitória. Enfim, tudo isso é temporal e passageiro, a vida é um teste em que não sabemos todas as respostas e nunca teremos, qualquer outro teste que eu faça não terá valor maior que o de saber viver em meio a todas as tragédias e superar cada dia como se fosse o último. Todo o resto é efêmero, vaidade temporal, gotas de chuva.

domingo, 17 de maio de 2020

Barro Barreto

Barro Barreto

Barreto
Curioso nome
Nem sempre pensamos o que representa
Vamos ao significado?
Nascido em local caracterizado pela existência do barro
Viemos do pó da terra
O pó hoje é asfalto
Eu vim de lá
Próximo de uma fábrica de tecidos
Quase na divisa com Niterói
Ah, que saudade!
Da casa casa onde de início morei
Só lembro da minha foto de cabeceira
Me mudei, para outros lugares
Neves, Parada 40, Paraíso.
Mas o barro do Barreto ficou em mim.
Exatamente numa esquina
Na rua Câmara Coutinho
Eu estou lá até hoje
Sonho com cada detalhe
Da casa da minha avó
Se eu fosse arquiteto
Faria uma casa igual
Em mínimos detalhes
Para entrar novamente lá
Lembrar de quando subia pelas escadas
Via lá no alto
Uma cadela pretinha
E esse era o nome dela
Do alto do terraço eu via a Guanabara e a BR.
Lá do portão eu me apaixonava
Maiaras e Laíses viviam em minha imaginação
Do alto dos meus 8 anos
Eu sonhava com um olhar ou um sorriso
Doce ilusão, mas o que marcou
Foram os chás de carqueja
O cafezinho da tarde e o pão com queijo
Não pode faltar a farofa!
Do outro lado da rua, meu pediatra
Cristeo, o doutor, me salvava das minhas febres
Era auxílio nas horas incertas
Toda a vizinhança reunida
Várias fotos e lembranças
A igrejinha na esquina
Presbiteriana, bem simples.
Lembro dos lanchinhos
Dos peixes desenhados na parede
E da canção marcante ao fundo.

Barreto
O barro está no coração
Saudosismo de bons tempos
Das casas e pessoas simples
Da história que já era história faz tanto tempo
Que eu nem ousava me questionar
Cenários quase bucólicos
Pessoas e passos no chão
O jardim de infância logo ali
"Escolinha Criativa"
Ao lado da igreja batista de Neves
Hoje é só uma casa qualquer
A memória viva sempre me faz pensar
Quantas vidas passaram por esse lugar.
De mãos dadas com meus pais
Saía a correr desembestado
Uma curva e estava lá novamente
No sobrado de pedras
Num bairro feito de barro.

Hoje eu sonho sem parar
Com todas as nuances desse lugar
Sim, se eu pudesse meu universo seria lá
Vendo o rio desaguar no mar
Ouvindo ao longe o som constante
De um piano que se avizinhava
De passar pelos colegas de infância
Que já se mudaram a tempos de lá
Andar 3 ruas paralelas
E parar numa casa cheia de relógios
Onde o que se quebrava era logo consertado
E eu era um contente desbravador
Brincando de sonhar
Com o tic tac que soava sem parar.

Meu Barro, meu Barreto
Guardo-te no coração
Se eu esqueci de algo
Me conceda o perdão
Que um dia eu volte a entrar
Por aquele cinzento portão
De mundos imaginários
Dos cômodos que abrigavam meus tios
Meus primos
Quase irmãos.

Histórias contadas e vividas
O horto
O posto de saúde imenso
As vacinas
O barbeiro pronto a cortar meu cabelo
A fábrica da Coca-Cola
Que hoje abriga um conjunto de prédios
Sempre que eu vejo minha avó
O barro que mora em mim
Saúda o barro que mora nela
Mesmo no alto do 10° andar
É para o chão que eu estou a olhar
Para o passado recontado a cada gesto
A cada palavra
A cada minuto
Tudo transpira o ar de 30 ou 60 anos atrás
Quando a terra era sem forma e vazia
E do barro fomos feitos
Barreto.

sábado, 16 de maio de 2020

Saudades quarentenais

Saudade da presencialidade
Dos toques e abraços
Do aconchego inocente
De cafunés aleatórios
De abraços com terceiras intenções
Dos beijos no canto da boca
Da boa e velha paquera real
De segurar as mãos olhando nos olhos
Do conforto de um bom colo
Das conversas olhando o teto
Do braço dormente ao acordar
De apelidos e implicâncias
De fazer planos sem parar
Olhar para uma casa qualquer
E sonhar com filhos e cachorros
Saudade de olhar na janela e ver online
Só para perguntar como foi seu dia
Depois de já termos nos despedido
Ver um filme abraçados
Jogar pipoca um no outro
Comer brigadeiro na panela
Aprender um idioma imaginário
Criar um mundo só nosso
Dentro de um aquário.
Do sentir o cheiro do perfume
Brincar de pique pega
Escrever cartinha de amor
Fazer surpresas infinitas
Até das briguinhas bobas
Ciuminhos bestas
Risadas sem motivo
Olhares sacanas
De fingir que éramos desconhecidos
E nos conquistarmos novamente
Saudade do que não vivi
Ou do que já nem me lembro mais
Saudade de ter saudade
De algumas vidas atrás
Ou de um futuro hipotético
Onde existamos um nós
Que desate os nós
Dessa ausêncialidade
Fria e seca
Quase mórbida
Mortal e viral
Onde não nos conhecemos mais
Saudades quarentenais.


Saudades

S
        A
 U
D
            A
D
     E
                     S

Sem tempo definido para acabar
Que apenas continua
E escorre
Como as palavras em desordem
Descendo em uma ampulheta.

Saudade!

Pedro Garrido